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Mulheres e meninas no esporte podem mudar o jogo global
Marta Vieira da Silva, publicado em 15/04/2020
DIA INTERNACIONAL DO ESPORTE PARA O DESENVOLVIMENTO E A PAZ – 6 DE ABRIL DE 2020 

 

 

Nunca esquecerei a noite de 2006, quando voltei à minha cidade natal, Dois Riachos (população 11.000), no Nordeste do Brasil, depois da primeira vez que ganhei o prêmio de melhor jogadora de futebol do mundo.

Quando cheguei lá, era quase meia-noite e a cidade inteira estava na rua. Entrei em um caminhão de bombeiros e as pessoas estavam aplaudindo e acenando. Eu não podia acreditar que eram as mesmas pessoas que, apenas alguns anos antes, me xingaram, me excluíram de campeonatos de meninos e disseram à minha mãe que ela deveria me proibir de praticar um esporte feito para homens. Naquela noite, percebi o poder de mulheres e meninas no esporte para mudar o mundo.


Até aquele momento, o meu único objetivo era jogar futebol. Eu não estava pensando em me tornar uma ativista ou um exemplo, como sou hoje. Eu não sabia que minha própria experiência na luta e na superação de inúmeras barreiras de gênero no meu caminho estava sacudindo e reformulando as normas de gênero para aquelas pessoas que estavam ao meu redor. Quando criança, eu era uma guerreira solitária que acabou demonstrando que as meninas podiam brincar tão bem quanto, ou até melhor, que os meninos. Mostrei à minha comunidade que as meninas também podiam desafiar o “bom senso” sobre a feminilidade e serem fortes, rápidas e teimosas. Quando deixei a minha cidade, aos 14 anos, para jogar futebol profissionalmente no Rio de Janeiro, estava enviando a mensagem de que mulheres e meninas são corajosas, independentes e podem se sustentar.


Embora o ritmo das mudanças às vezes pareça frustrantemente lento, as sociedades evoluíram da maneira como percebem mulheres e meninas. Hoje em dia, quando volto ao Brasil para visitar a minha família, é incrível ver quantas garotas estão jogando nas ruas, participando de clubes de futebol e sonhando em se tornar jogadoras profissionais. Mulheres e meninas no esporte fizeram contribuições importantes para as mudanças que vemos dentro e fora do campo. Quando brincamos, desafiamos os estereótipos de gênero e fazemos com que as pessoas questionem a falsa ideia de que algumas atividades são apenas para homens. Exercemos nosso direito de ocupar o espaço público, que, infelizmente, ainda é visto com muita frequência como domínio masculino. E, como construímos confiança e resiliência por meio do esporte, temos maiores oportunidades de interromper o ciclo de violência de gênero e ajudar outras mulheres e meninas a fazer o mesmo.


Quando as atletas do sexo feminino têm a chance de se destacar, os resultados são enormes. E para isso, a Copa do Mundo Feminina de 2019 foi realmente uma virada no jogo. A audiência global do torneio ultrapassou 1 bilhão de pessoas. Tenho orgulho de dizer que o jogo que o Brasil competiu contra a França foi assistido por 35 milhões de pessoas, o maior público de uma partida de futebol feminino da história. Foi lindo ver tantas mulheres e meninas na plateia, além de homens e meninos curtindo o jogo. Jogadoras de futebol, treinadoras, árbitras e jornalistas desafiaram os estereótipos de gênero na cobertura da mídia, demonstraram respeito pela diversidade sexual e, é claro, lutaram por salários iguais. Essas questões foram levantadas diante de um grande público e, como resultado, ganharam força na agenda global. Não apenas elas foram transformadas em ação no mundo do esporte, mas também entre uma nova geração que está exigindo seus direitos.


 

                                                                     

 

Fiquei profundamente comovida quando soube que as meninas do programa “Uma Vitória Leva à Outra” (UVLO), um programa esportivo para meninas da ONU Mulheres e do Comitê Olímpico Internacional (COI), estavam encontrando grande aceitação e apoio entre suas famílias e comunidades para continuar praticando esportes após a Copa do Mundo Feminina. Recentemente, conheci algumas meninas no Rio de Janeiro e humildemente as ouvi dizendo que as minhas colegas de futebol e eu servimos de inspiração para elas. Kathely Rosa, uma goleira de 19 anos, me disse que vê muitas semelhanças entre a minha história e a dela. Quando ela olha para as batalhas que eu fui capaz de vencer, isso a faz acreditar que pode vencer as dela também.
 

Como eu, muitas outras atletas inspiraram mulheres e meninas a acreditarem em si mesmas e ampliaram a percepção coletiva sobre o que meninas e mulheres são capazes.


O que eu acho fascinante é que essa cadeia de inspiração continua crescendo. Veja Kathely, que quer ser treinadora profissional e treinar um time de futebol feminino em sua comunidade. Atualmente, ela estuda Educação Física e está tão determinada a atingir o seu objetivo que não tenho dúvidas de que ela terá sucesso.

Quando isso acontecer, será a sua vez de inspirar outras meninas, transmitindo os valores essenciais do esporte, como disciplina, respeito, trabalho em equipe, diversidade e autoconfiança, que são transferíveis para muitas outras áreas da vida.


Outro exemplo é a Hingride, uma jogadora de rugby que se formou no programa UVLO no ano passado. Ela agora é facilitadora de um novo grupo de meninas jogando rugby em sua comunidade, ensinando muito mais do que apenas como marcar gols. Ela também ensina as meninas sobre questões de gênero, auto-estima e liderança, saúde e direitos sexuais e reprodutivos, violência baseada em gênero e empoderamento econômico.
 

Essas jovens jogadoras de rugby compartilharão seus conhecimentos com suas famílias, amigas e amigos, criando um ciclo virtuoso de transformação positiva. Como a pesquisa demonstra, quando a prática esportiva é combinada com espaços seguros físicos e emocionais, ela cria um efeito multiplicador em várias áreas de desenvolvimento, incluindo saúde, educação e redução de desigualdades. Hingride é a prova viva.

Precisamos de mais investimento no acesso ao esporte para meninas e um campo de jogo uniforme para mulheres profissionais no esporte. Os dividendos são tão claros. Se queremos acelerar o ritmo da mudança para alcançar a igualdade de geração, vamos atrair mais garotas para o campo e iluminar as grandes conquistas das mulheres atletas. Porque uma vitória realmente leva à outra! É claro que mulheres e meninas no esporte têm um grande papel a desempenhar na mudança do jogo global. É hora da igualdade de gênero.

 

Sobre a autora: Marta Vieira da Silva é Embaixadora da Boa Vontade da ONU Mulheres para mulheres e meninas no esporte e Advogada da Secretaria-Geral dos ODS da ONU.


Artigo originalmente publicado em: https://www.un.org/en/un-chronicle/women-and-girls-sport-can-change-global-game
 

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